Vitória
Nasceu em Salazar, hoje Dalantando, em 1960.
Seu nome completo era Maria Vitória Mateus Gongo, nome que nunca mais esqueci...
Não tinha pai e sua mãe, com muitos filhos para criar, mandou-a para Luanda aos 10 anos, na companhia de uma irmã mais velha, para servir como ama do bebé, a um casal jovem, de ascendência africana, que residiam no mesmo prédio que eu, na Rua Coronel Artur de Paiva, n.º 111, no mesmo andar, o 4º, e no apartamento ao lado.
Foi aí que a conheci.
Miúda esperta, com uns olhos vivos e curiosos, vestida com um kimono e calções, magra talvez pela idade de crescimento e alimentação reduzida mas de uma beleza que atraía.
Comecei a falar com ela, quando nos cruzávamos, ela embalando o menino, eu carregando os livros. Foi nestas conversas que fiquei a saber o grande desejo de aprender a ler e escrever... de frequentar a Escola... de saber mais...
Mas não podia! Tinha de tomar conta do "minino"!
Ela, uma menina também, com apenas 10 anos, e já com a responsabilidade de uma criança!
Um dia, chegando a casa com a minha mãe, encontrei a Vitória nas escadas do prédio chorando.
Tentando resolver aquela aflição, perguntei porque chorava:
-Minina, eu tem fome! Mi dói a barriga de tanto roncar!
Revolta da minha parte... solução da parte da minha mãe!
Levámos a Vitória para nossa casa e servimos-lhe um prato de sopa... conversámos... comeu parte do nosso jantar (que tinha sobrado do almoço)... e continuámos a conversar...
A partir desse dia era na minha casa que Vitória se alimentava...
A patroa, ao ver tanta familiaridade, resolveu informar a minha mãe que ela era... uma ladra! Tinha que trancar a geleira pois a Vitória roubava... comida!
Passava muito tempo em nossa casa... aprendendo. Ensinámo-la a ler e a escrever... a fazer contas (as 4 operações), mas a sua paixão era a leitura...todo o tempo disponível que tinha era para ler os livros que eu lhe emprestava...
Um dia aparece a chorar, pois a patroa ia embora e ela tinha de ir também...
Perguntámos-lhe se queria ir e ela, com os olhos chorosos disse que não...não queria mais passar fome nem queria deixar de aprender coisas novas!
Então fomos falar com a patroa... propusemos tomar conta da Vitória, pagar-lhe uma mensalidade pelo trabalho doméstico que ela pudesse fazer em nossa casa, ensinar-lhe corte e costura ("profissão" da minha mãe) e a continuar a ler e a aprender tudo o que pudesse...
E assim foi... ganhei uma "irmã" mais nova que dormia no meu quarto e que comia à nossa mesa.
Ainda pensámos em matriculá-la numa Escola mas... a Vitória "não existia"... ou seja não estava registada, não tinha documento algum...
Sem o apoio da família, era difícil fazer alguma coisa...
Mas assim como era tratada já ela estava bem contente...
A Vitória cresceu!
Esteve em minha casa de 1970 a 1975...
Tornou-se uma linda rapariga de beleza rara, corpo de sereia e alegria de gazela...
1975!
Malfadado ano que nos obrigou a abandonar o que mais gostávamos...
Quando, por via das circunstâncias, nos viemos embora, fizemos questão de lhe deixar tudo o que até então fazia parte dos nossos bens....mobiliário, electrodomésticos e até os angolares que não nos deixaram trazer...tudo descrito num documento assinado e reconhecido em notário (não sei se terá servido, pois o caos era muito).
Como chorámos, ela e nós, deste afastamento que, apesar das promessas, sabíamos ser um ADEUS para sempre...
Vitória... a nossa Vitória... por onde andará a linda menina de olhos vivos e curiosos...
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